Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. Leitura de Aracy Balabanian.
Fonte: http://youtu.be/g-6aS8Uaqg0
Ela
era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio
arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos
achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por
cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora
de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco
aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo
menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da
loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra
bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
Mas
que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança,
chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que
éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos
livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha
ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia:
continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.
Era
um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele,
comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me
que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até
o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu
não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me
traziam.
No
dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num
sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para
meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que
eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar,
mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a
andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de
Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte
viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor
pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí
nenhuma vez.
Mas
não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da
livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta
de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta
calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia
seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do
"dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E
assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu
já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto
tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes
ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio
de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada
a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
Até
que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e
silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a
aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu
explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de
palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o
fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se
para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu
daqui de casa e você nem quis ler!
E
o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia
ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em
silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a
menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi
então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha:
você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o
livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o
livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou
pequena, pode ter a ousadia de querer.
Como
contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na
mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando
como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso
com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até
chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu
coração pensativo.
Chegando
em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o
susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas,
fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão
com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o,
abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para
aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia
ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu
vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
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EXPLORAR:
ENREDO: de seqüência linear
com grande carga psicológica.
ÉPOCA E DURAÇÃO: não são precisas
PROTAGONISTA: a narradora que sofre sozinha. Daí o nome
felicidade clandestina
ANTAGONISTA: a dona do livro
PERSONAGEM SECUNDÁRIA: a mãe
TEMPO ÉPOCA: o ontem - 25 anos atrás, As Reinações de
Narizinho - cortiço e pobreza em oposição a riqueza e bens.
TEMPO DURAÇÃO: algumas
semanas
ESPAÇO: Recife, o portão da casa da menina rica
NARRADOR: em 1ª pessoa – a protagonista – mostra seu sofrimento
interior por não conseguir seu objeto de desejo, o livro. Esse sofrimento se
expressa fisicamente, pelas olheiras. Depois mostra seu prazer em tê-lo pelo
tempo que quisesse.
CLASSES SOCIAIS: duas, a rica e a pobre
PRECONCEITO: contra pessoas gordas – contra pessoas pobres
ATÉ O 3° PARÁGRAFO: apresenta a descrição das personagens
RELACIOMENTO: a mãe da menina rica não conhecia a filha que tinha
EXPRESSÕES DE TEMPO: até que, no outro dia, no dia seguinte
DESENHO DO TEXTO: em
história em quadrinhos.
LEITURA - Reinações de Narizinho - (monteiro Lobato)
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Atividades de interpretação:
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-
http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1112-2.pdf
Roteiro de leitura de "Vidas secas", de Graciliano Ramos
O Homem Nu
Leia o texto abaixo e em seguida responda as
questões de 1 a 11.
O Homem Nu
Fernando Sabino
Ao acordar, disse para a mulher:
— Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o
sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe
dinheiro da cidade, estou a nenhum.
— Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
— Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente
as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro,
não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até
cansar — amanhã eu pago.
Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um
banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer
um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o
pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e
para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado
pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia
aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si
fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à
espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do
chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher
pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
— Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
Quanto mais batia, mais
silêncio fazia lá dentro.
Enquanto isso, ouvia lá
embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os
andares... Desta vez, era o homem da televisão!
Não era. Refugiado no
lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou
para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho
de pão:
— Maria, por favor! Sou eu!
Desta vez não teve tempo
de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo...
Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido,
embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos
na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador,
apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava,
vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado,
enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
Mas eis que a porta
interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
— Ah, isso é que não! — fez o homem nu, sobressaltado.
E agora? Alguém lá
embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo
ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado
cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro
pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado
Regime do Terror!
— Isso é que não — repetiu, furioso.
Agarrou-se à porta do
elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.
Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava.
Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a
chamar o elevador. Antes de mais nada: "Emergência: parar".
Muito bem. E agora? Iria subir ou descer? Com cautela desligou a parada
de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O
elevador subiu.
— Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem
nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
Voltou-se, acuado,
apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho
de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
— Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso. — Imagine que eu...
A velha, estarrecida,
atirou os braços para cima, soltou um grito:
— Valha-me Deus! O padeiro está nu!
E correu ao telefone para
chamar a radiopatrulha:
— Tem um homem pelado aqui na porta!
Outros vizinhos, ouvindo
a gritaria, vieram ver o que se passava:
— É um tarado!
— Olha, que horror!
— Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele
entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do
banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
— Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
Não era: era o cobrador da televisão.
Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.
01. (D10) O que gerou o conflito da
narrativa?
02. (D10) Qual é o enredo ou conflito da
narrativa?
03. (D2) Que palavras do texto pode substituir a expressão “parar repentinamente?”
03. (D2) Que palavras do texto pode substituir a expressão “parar repentinamente?”
04. (D11) Qual a causa ou motivo que levou
o homem a se esconder para não debitar a dívida?
05. (D10) Qual é o cenário onde esta
história se passa?
06. (D16) Copie um trecho do texto que
expresse ideia de humor.
07. (D10) Copie do texto um trecho
referente ao tempo cronológico.
08. (D10) Quais são os personagens
principais do texto?
09. (D10) Quais os personagens
secundários?
10. (D12) Com que finalidade o cronista
nos propõe esta crônica?
11. (D10) De que maneira o cronista se
expressa para finalizar sua história?
RESPOSTAS
01. O homem não trouxe o dinheiro da
cidade para pagar a prestação da televisão.
02. Quando o homem pede a mulher para
ficar quieta dentro de casa, quando o cobrador da televisão chegasse, pensasse
que não havia ninguém, o deixasse bater na porta até cansar, no outro dia ele
pagaria.
03. Interromper-se de súbito.
04. Ele
estava sem dinheiro para pagá-la, envergonhado preferiu se esconder e assim
teria tempo suficiente para debitar sua dívida.
05. Em um apartamento.
06. A velha,
estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: “Valha-me Deus! O
padeiro está nu!”
07. [...]. Deixa
ele bater até cansar __ amanhã eu pago.
08. O homem e sua mulher.
09.O cobrador da televisão e os vizinhos.
10. Mostra-nos que caso como este acontece frequentemente no
cotidiano.
11. De forma surpreendente e
humorística.
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