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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector

Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector. Leitura de Aracy Balabanian.
                                                    Fonte: http://youtu.be/g-6aS8Uaqg0






Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.


Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.




in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998


Clarice Lispector


EXPLORAR:
ENREDO: de seqüência linear com grande carga psicológica.
ÉPOCA E DURAÇÃO: não são precisas
PROTAGONISTA: a narradora que sofre sozinha. Daí o nome felicidade clandestina
ANTAGONISTA: a dona do livro
PERSONAGEM SECUNDÁRIA: a mãe
TEMPO ÉPOCA: o ontem - 25 anos atrás, As Reinações de Narizinho - cortiço e pobreza em oposição a riqueza e bens.
TEMPO DURAÇÃO: algumas semanas
ESPAÇO: Recife, o portão da casa da menina rica
NARRADOR: em 1ª pessoa – a protagonista – mostra seu sofrimento interior por não conseguir seu objeto de desejo, o livro. Esse sofrimento se expressa fisicamente, pelas olheiras. Depois mostra seu prazer em tê-lo pelo tempo que quisesse.
CLASSES SOCIAIS: duas, a rica e a pobre
PRECONCEITO: contra pessoas gordas – contra pessoas pobres
ATÉ O 3° PARÁGRAFO: apresenta a descrição das personagens
RELACIOMENTO: a mãe da menina rica não conhecia a filha que tinha
EXPRESSÕES DE TEMPO: até que, no outro dia, no dia seguinte
DESENHO DO TEXTO: em história em quadrinhoshttp://cdncache-a.akamaihd.net/items/it/img/arrow-10x10.png. LEITURA - Reinações de Narizinho - (monteiro Lobato)
  
Atividades de interpretação: 
Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector e outros textos sugeridos
    • O Homem Nu
      Leia o texto abaixo e em seguida responda as questões de 1 a 11.
      O Homem Nu
      Fernando Sabino
                Ao acordar, disse para a mulher:
                — Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa.  Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum.
                — Explique isso ao homem — ponderou a mulher.
                — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago.
                Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão.  Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo vento.
                Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper-se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos:
                — Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa.
      Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.
      Enquanto isso, ouvia lá embaixo a porta do elevador fechar-se, viu o ponteiro subir lentamente os andares...  Desta vez, era o homem da televisão!
      Não era. Refugiado no lanço da escada entre os andares, esperou que o elevador passasse, e voltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas mãos nervosas o embrulho de pão:
                 — Maria, por favor! Sou eu!
      Desta vez não teve tempo de insistir: ouviu passos na escada, lentos, regulares, vindos lá de baixo... Tomado de pânico, olhou ao redor, fazendo uma pirueta, e assim despido, embrulho na mão, parecia executar um ballet grotesco e mal ensaiado. Os passos na escada se aproximavam, e ele sem onde se esconder. Correu para o elevador, apertou o botão. Foi o tempo de abrir a porta e entrar, e a empregada passava, vagarosa, encetando a subida de mais um lanço de escada. Ele respirou aliviado, enxugando o suor da testa com o embrulho do pão.
      Mas eis que a porta interna do elevador se fecha e ele começa a descer.
                — Ah, isso é que não!  — fez o homem nu, sobressaltado.
      E agora? Alguém lá embaixo abriria a porta do elevador e daria com ele ali, em pêlo, podia mesmo ser algum vizinho conhecido... Percebeu, desorientado, que estava sendo levado cada vez para mais longe de seu apartamento, começava a viver um verdadeiro pesadelo de Kafka, instaurava-se naquele momento o mais autêntico e desvairado Regime do Terror!
                — Isso é que não — repetiu, furioso.
      Agarrou-se à porta do elevador e abriu-a com força entre os andares, obrigando-o a parar.  Respirou fundo, fechando os olhos, para ter a momentânea ilusão de que sonhava. Depois experimentou apertar o botão do seu andar. Lá embaixo continuavam a chamar o elevador.  Antes de mais nada: "Emergência: parar". Muito bem. E agora? Iria subir ou descer?  Com cautela desligou a parada de emergência, largou a porta, enquanto insistia em fazer o elevador subir. O elevador subiu.
                  — Maria! Abre esta porta! — gritava, desta vez esmurrando a porta, já sem nenhuma cautela. Ouviu que outra porta se abria atrás de si.
      Voltou-se, acuado, apoiando o traseiro no batente e tentando inutilmente cobrir-se com o embrulho de pão. Era a velha do apartamento vizinho:
                  — Bom dia, minha senhora — disse ele, confuso.  — Imagine que eu...
      A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito:
                  — Valha-me Deus! O padeiro está nu!
      E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha:
                  — Tem um homem pelado aqui na porta!
      Outros vizinhos, ouvindo a gritaria, vieram ver o que se passava:
                  — É um tarado!
                  — Olha, que horror!
                  — Não olha não! Já pra dentro, minha filha!
                  Maria, a esposa do infeliz, abriu finalmente a porta para ver o que era. Ele entrou como um foguete e vestiu-se precipitadamente, sem nem se lembrar do banho. Poucos minutos depois, restabelecida a calma lá fora, bateram na porta.
                  — Deve ser a polícia — disse ele, ainda ofegante, indo abrir.
                  Não era: era o cobrador da televisão.

      Esta é uma das crônicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extraída do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 65.
      01.   (D10) O que gerou o conflito da narrativa? 
      02.  (D10) Qual é o enredo ou conflito da narrativa? 
      03.  (D2) Que palavras do texto pode substituir a expressão “parar repentinamente?” 
      04.   (D11) Qual a causa ou motivo que levou o homem a se esconder para não debitar a dívida
      05.  (D10) Qual é o cenário onde esta história se passa?
      06.   (D16) Copie um trecho do texto que expresse ideia de humor. 
      07.   (D10) Copie do texto um trecho referente ao tempo cronológico. 
      08.  (D10) Quais são os personagens principais do texto? 
      09.  (D10) Quais os personagens secundários? 
      10.  (D12) Com que finalidade o cronista nos propõe esta crônica? 
      11.  (D10) De que maneira o cronista se expressa para finalizar sua história?
        
      RESPOSTAS
      01. O homem não trouxe o dinheiro da cidade para pagar a prestação da televisão.
      02. Quando o homem pede a mulher para ficar quieta dentro de casa, quando o cobrador da televisão chegasse, pensasse que não havia ninguém, o deixasse bater na porta até cansar, no outro dia ele pagaria.
      03. Interromper-se de súbito.
      04. Ele estava sem dinheiro para pagá-la, envergonhado preferiu se esconder e assim teria tempo suficiente para debitar sua dívida.
      05.  Em um apartamento.
      06. A velha, estarrecida, atirou os braços para cima, soltou um grito: “Valha-me Deus! O padeiro está nu!”
      07. [...]. Deixa ele bater até cansar __ amanhã  eu pago.
       08. O homem e sua mulher.
      09.O cobrador da televisão e os vizinhos.
      10. Mostra-nos que caso como este acontece frequentemente no cotidiano.
       11. De forma surpreendente e humorística.


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